Os judeus, os cristãos ortodoxos, católicos e protestantes, e os muçulmanos compartilham a fé de que há um único Deus, o qual seja YHWH(1), o Deus de Israel e do universo inteiro. Mas em que contexto surge a fé em YHWH na perspectiva da história das religiões, ou mais precisamente no ambiente das religiões do antigo oriente? Será que as características originárias de YHWH conferem com a atual concepção de Deus? Houve algum desenvolvimento quanto aos atributos de YHWH ao longo do tempo de modo que ele veio a se tornar o Criador Compassivo dos credos monoteístas? Não é preciso ir longe, senão nos próprios textos bíblicos, para investigar as várias camadas que se sobrepuseram para compor o conceito tardio sobre YHWH. Graças ainda ao estudo histórico se pode compreender que determinadas circunstâncias influenciaram a compreensão dos israelitas sobre seu Deus.
Há algumas palavras para designar Deus na língua hebraica: as duas principais são “EL” e “YHWH”, as quais as versões populares da Bíblia traduzem pelas palavras “Senhor”(2), e “Deus”(3). Na verdade EL e YHWH podem não ser apenas dois epítetos diferentes para o mesmo Deus, mas há indícios de que EL e YHWH tenham sido deuses diferentes, que mais tarde foram fundidos em um só pelos redatores da Bíblia.
A maioria dos biblistas atualmente está de acordo que os livros da Tanakh (Bíblia Hebraica, Antigo Testamento), passou por diversas etapas redacionais, o que é indicado por fatores como interpolações, repetições, pelo fato de determinados textos apresentarem mais de uma introdução, ou mais de uma conclusão, entre outros aspectos de caráter filológico. A Bíblia, portanto, é como uma colcha de retalhos em que pedaços mais novos são enxertados junto com pedaços antigos. Em alguns momentos, textos individuais foram recolhidos em obras maiores, que contém teologias e visões de mundo próprias, que adaptaram tais textos a tais teologias.
A primeira assertiva que se quer propor é: IHWH não foi sempre o Deus de Israel. Como o próprio nome indica, o Deus de Isra-EL era inicialmente o deus “EL”. Grande quantidade de tábuas de argila sobrescritas em caracteres cuneiformes, encontradas nas ruínas de Ugarit, que foi uma importante cidade-estado mesopotâmica, localizada próximo a Ur (de onde, segundo a Bíblia, partiu a família de Abraão) dão testemunho da religião praticada ali. Segundo tais documentos históricos, EL era a divindade superior, o pai de todos os demais deuses do panteão cultuados na região, vindo depois a perder seu lugar para Baal, filho de EL, que em determinado momento tornou-se mais popular. Essas características de EL podem ser observadas em alguns textos bíblicos como o salmo 82,1s: “EL se levanta em meio a assembleia dos poderes, em meio aos deuses ele julga...”. Assim narra também o Deuteronômio: Dt 32,8-9: “Quando Elion (o EL maior, o altíssimo) dividia os povos e dispersava os filhos dos homens, fixou limites aos povos, segundo o número dos seus filhos (os deuses menores). Entretanto, a parte de Elion era o seu povo, Jacó, a porção de sua herança.” O que significa que, segundo esta narrativa, Elion, o deus mais alto, dividiu as nações entre os deuses menores, mas a si mesmo lhe coube escolher Jacó (nome do patriarca que também indica o nome do povo de Israel).
Há determinados textos na Bíblia que não negam a existência de outros deuses, mas informam apenas que o seu deus era maior do que eles, ou então que somente YHWH pode ser adorado em detrimento de outros deuses. "Quem entre os deuses é como tu, ó Senhor? E quem é como tu poderoso em santidade, admirável em louvores, operando maravilhas?" (Ex 15,1); Pois tu, SENHOR, és o Altíssimo em toda a terra; muito mais elevado que todos os deuses. (Sl 97,9).
Sobre o culto a EL não há nenhuma espécie de rigidez sobre lugares de culto, ou castas sacerdotais, o culto era realizado pelo “pater familia”. Só com a reforma javista (Davi, Salomão ou mais provavelmente Ezequias e Josias), é que o local obrigatório de culto passou a ser no templo de Jerusalém.
Para melhor explicarmos a ascensão de YHWH ao topo da devoção israelita, precisaremos saber o contexto histórico em que isso se deu dentro do processo de formação deste povo. É particularmente complicado contar a história do povo de Israel. Durante muito tempo ainda se considerou a Bíblia como fonte historiográfica, porém estudos arqueológicos e históricos liderados por Israel Finkelstein, da Universidade de Tel Aviv, têm colocado em xeque os dados bíblicos, radicalmente.
A formação do povo de Israel e a trajetória desse povo até se assentar na terra de Canaã pode ser apenas esboçada. Entre os estudiosos se fala de uma origem mista, sendo esse povo formado a partir de vários grupos "habirus": agricultores periféricos de Canaã e diversos grupos de pastores semi-nômades. É na origem mista da população que devemos buscar a entronização de IHWH na religiosidade de Canaã.
Se YHWH não fazia parte da religião israelita, de onde veio YHWH? Provavelmente foram migrantes vindos do sul que implantaram a fé em YHWH nos meio dos israelitas. Eles conheceram YHWH nos montes de Edom. Assim declaram Isaías, Habacuque e o Deuteronômio:
Quem é este, que vem de Edom, de Bozra, com vestes tintas; este que é glorioso em sua vestidura, que marcha com a sua grande força? Eu, que falo em justiça, poderoso para salvar. (Is 63,1)
Deus veio de Teman, e do monte de Pharan o Santo (Selá). A sua glória cobriu os céus, e a terra encheu-se do seu louvor. E o resplendor se fez como a luz, raios brilhantes saíam da sua mão, e ali estava o esconderijo da sua força. (Hab 3,3,4).
O Senhor veio de Sinai, e lhes subiu de Seir; resplandeceu desde o monte Pharan, e veio com dez milhares de santos; à sua direita havia para eles o fogo da lei. (Dt 33:2).
A origem geográfica de YHWH é portanto, Edom e Teman, e não Canaã. Edom ficava onde hoje está o sul da Jordânia. Teman, mais longe, na atual Arábia Saudita, o monte Pharan pode ser identificado segundo alguns autores, como sendo o verdadeiro Sinai. Segundo Schwantes, o usufruto do alto dos montes foi proporcionado pelo advento do manuseio do ferro, e ali se desenvolveu pequenas sociedades fundadas sobre a experiência de deus YHWH, segundo uma nova ética colaborativa. A YHWH era atribuída a fuga de grupos escravizados do Egito e a manutenção destes grupos peregrinos pelo deserto. Segundo a própria Bíblia não foi em Canaã que Israel encontrou-se com YHWH, mas enquanto vagava no deserto: “Na solidão desértica o encontrou, entre bramidos de regiões desoladas, e o cercou de cuidados, e o acalentou, e o guardou como a menina dos olhos! Tal qual águia vigilante sobre o ninho, esvoaçando sobre os filhotes, ele estendeu as asas e o tomou, o transportou sobre sua plumagem. Só o YHWH foi o seu guia; nenhum outro deus estava com ele.” (Dt 32, 10-12).
E quais eram, então, os atributos de Javé nesse momento: YHWH era, aí o deus da montanha, o deus das tempestades e o deus das guerras. Não é a toa que o lugar em que Moisés se encontra com Deus é no alto das montanhas. Aliás, as montanhas, em várias religiões, são frequentemente o local de morada dos deuses. São inúmeras as passagens em que YHWH se manifesta através dos ventos, das nuvens, dos raios e trovões... Em uma conjuntura de contínuas lutas pelo domínio das terras cananéias foi bem conveniente evocar o deus que dá a vitória nas guerras, que dispara flechas através de raios (Sl 144,6). Neste período, YHWH era representado pela imagem de um bezerro, ou seja, um touro jovem, representando assim a força e a intempestividade do mesmo. A Bíblia menciona que o YHWH de Samaria eram bezerros (Os 10,5); “Depois de ter recebido alguns conselhos, o rei fez dois bezerros de ouro e declarou ao povo: “Ó Israel, já chega de subires a Jerusalém; aqui estão teus deuses e divindades que te tiraram da terra do Egito!”. (1Rs 12,28). A mesma coisa que teria feito também Aarão (construído um bezerro a quem conferiu a libertação do Egito - Ex 32,2). Como síntese dessas características naturalistas de YHWH está também o Salmo 29. “ voz do Senhor ouve-se sobre as suas águas; o Deus da glória troveja; o Senhor está sobre as muitas águas. A voz do Senhor é poderosa; a voz do Senhor é cheia de majestade. (3,4).
“YHWH, em forma de bezerro, representado em inscrição hebraica (século VIII a.C.): “Eu te abençoo por Yahweh de Samaria e sua Asherah”
A concepção de um Deus Transcendente, superior ao universo, é somente uma construção rebuscada, e mais tarde enriquecida pela filosofia grega. A ideia dos antigos povos do Oriente Médio sobre os deuses e seu papel na vida cotidiana dos mesmos era bem diferente. Um deus estaria sempre ligado a alguma força ou elemento da natureza, a um lugar, a um povo específico, a um aspecto de suas vidas: deuses das guerras, deuses da fertilidade etc. E com Israel não foi diferente.
A princípio, segundo Römer, a chegada de YHWH não teria suplantado imediatamente os demais deuses cultuados em Canaã, mas seu culto foi inserido ao lado de outras divindades populares, como o próprio El, Baal, Asherah... Foi então, que a fundação da monarquia deu uma preponderância cada vez maior a YHWH. O chamado "Javismo" foi uma tentativa, talvez não de Davi, nem de Salomão, mas de outros reis como Ezequias (726-697 a.C) e (Josias 649-609 a.C), de implantar um santuário único para legitimar Jerusalém como capital de um Reino abrangente. A ascensão de YHWH ao lugar mais alto do panteão é descrito no Salmo 47: “Sobe Deus entre aclamações, YHWH subiu ao clangor da trombeta.”
A pessoa do rei, na antiguidade era frequentemente considerada como o vigário ou o representante do deus local. A adoção do rei de Israel por parte de Deus, interpretada pelos cristãos nos “salmos da realeza” (por exemplo, o Salmo 2) como sinais da filiação divina de Jesus, são originalmente dirigidas às dinastias reais em Judá e Israel. Neste estágio, YHWH adquiriu tanto traços de realeza, como de uma divindade solar (Salmo 18), e possivelmente era representado como um homem sentado num trono sobre querubins (estátuas de animais híbridos alados) (cf. Is 6,1-2).
A Bíblia narra que no Reinado de Josias houve uma profunda reforma religiosa, onde se eliminou os locais alternativos de culto a YHWH e a outras divindades. Se procedeu também nesse período uma nova redação das Escrituras, a qual tratou de, segundo afirma Romer, a moda do que foi feito fisicamente (a destruição da memória do culto de outras divindades em Canaã), fazer a mesma coisa no âmbito da literatura. No entanto, como figuras como Abrão, Isaac e Jacó (que tinham como Deus, EL – Dt 29,26; Jz 2,12-13) eram figuras muito caras a identidade do povo, os redatores trataram de coadunar as tradições e unificar as figuras de EL e de YHWH. Assim, portanto, deve ser lida a revelação de YHWH a Moisés: “YHWH, o EL de vossos pais, o EL de Abraham, o EL de Isaac e o EL de Jacob, me enviou a vós”. (Ex 3,15). Também expressiva desta temática é a declaração da reforma deuteronomista: ”YHWH nosso EL é um” (Dt 6,4). O que pode significar que havia vários YHWHs e não só o de Jerusalém.
YHWH na Bíblia foi certamente vinculado ao povo de Judá e Israel e tão somente a este povo. Um Deus universal era inconcebível nas culturas antigas. Na Bíblia Hebraica, YHWH tem um particularíssimo afeto por Israel, a quem destina a misericórdia, a quem ajuda nas batalhas contra os demais povos. Já para as outras nações está destinada somente a sua ira (Cl 1,21, Rm 5,10). Não havia um universalismo. Todas as nações devem se prostrar diante de Israel (Sl 72,11).
Até que essa concepção foi colocada em crise pela experiência da dominação babilônica e pelo Exílio. Dentre muitas tentativas de interpretação (inclusive o ateísmo, e a conversão aos deuses babilônicos), diante de execração de Judá pelo império babilônico, e portanto, o fracasso de seu deus, os judeus refugiados interpretaram que YHWH havia utilizado os babilônios para lhes castigar. Sendo assim, YHWH já não era apenas seu deus, mas o Deus Universal que governava os povos.
Até aqui foi visto que YHWH foi sempre apresentado com aspectos bastante fortes e até mesmo cruéis. Em tempos de grande desespero por parte dos israelitas, como no tempo do exílio babilônico e as dominações posteriores, alguns profetas como Oséias, Ezequiel e o II Isaías transmitiram uma mensagem de fidelidade, e clemência por parte de seu Deus, mostrando outra face de YHWH, mais precisamente de EL, que tinha traços mais paternais, e portanto, bondosos. É também o fenômeno profético que vai atribuir a YHWH o ofício de julgar e recompensar os justos com a vida eterna no dia final. É somente no livro de Daniel, escrito já no período helenista, que aparece pela primeira vez a ideia de ressurreição (Dn 12,2).
Sendo assim, constata-se que o YHWH originário tinha feições bem diferentes da do Deus Único cultuado hoje pelas grandes religiões monoteístas. Ele não era um Deus que habita os altos céus, que criou todas as coisas e é clemente para com as misérias humanas, mas sim, ele era um deus das tempestades e das guerras que habitava em alguma montanha da região localizada ao sudoeste de Canaã, ao sul da atual Jordânia, que adotou o povo de Israel como sendo seu povo particular. Mas YHWH, que pouco a pouco foi galgando a posição do Deus Único e Universal, foi obtendo novos traços e novas concepções, por meio de acontecimentos históricos bastante peculiares, dando-lhe uma roupagem mais aceitável para futura humanidade.
(1) Sabe-se que o hebraico antigo era escrito apenas com consoantes, e a pronúncia tradicional do tetragrama YHWH (transliteração para o nosso alfabeto) não foi preservado. Alguns defendem que a pronúncia seria Jeová, a maioria dos especialistas defendem que seria Iavé, foram encontradas todavia inscrições que indicam outras variantes ou abreviações que tiveram maior uso em determinada época ou lugar, como por exemplo Iahu.
(2) O nome Senhor (em hebraico, Adhonai; em grego Kyrios; em latim, Dominus) já era utilizado como substituição da pronúncia de YHWH pelos judeus e judeus-helenistas.
(3) Deus (em grego, théos); termo equivalente em hebraico, el; em latim, Deus) é um termo geral para indicar uma divindade, tanto o Deus Único, como deuses de outras religiões, tal como em português, Deus; deus Júpiter, Posêidon...
A Bíblia sem mitos. Eduardo Arens. Paulus, 2007.
Arqueologia das terras da Bíblia I e II. José Ademar Kaefer. Paulus. 2015.
A origem de Javé: o Deus de Israel e seu nome. Thomas Römer. Paulus. 2015.
Milton Schwantes. Breve história de Israel. Oikos. 2008.
Sobre o tema:
Iahweh ou Javé: A origem do deus de Israel: Em:
http://histriadasreligies.blogspot.com.br/2013/05/yahweh-ou-jave-origem-do-deus-de-israel.html
The Religion of Ancient Israel, Patrick D. Miller, Westminster John Knox Press (2000)
The History of God, Karen Armstrong, Ballatine Books (Disponível em português)
God: A Biography, Jack Miles, Alfred A. Knopf, Inc (1996) (Disponível em português)
No other gods: Emergent Monotheism in Israel, Robert Karl Gnuse, T&T Clark, (1997)
Yahweh and the gods and goddess of Canaan, John Day
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