Imagine-se no lugar do "homem das cavernas"... Como seria maravilhar-se com o céu noturno, os ciclos da natureza, as catástrofes naturais, tempestades, inundações, tremores de terra, o movimento do astros nos céus, a noite e o dia, a luta pela sobrevivência, suas próprias emoções: a euforia e o medo, a angústia e a raiva; o mistério da vida e da morte, o sono e os sonhos...
Imagine em que circunstâncias se deu o despertar da consciência humana, e ao mesmo tempo não ter à mão nenhuma explicação plausível para todos estes fenômenos... Seria como cair de paraquedas em mundo completamente novo... Tais circunstâncias exigiriam um longo tempo para a humanidade crescer na cognição, no entendimento da realidade como ela se apresenta...
Diante das vicissitudes da vida, seja no âmbito do enfrentamento da natureza, seja nas relações humanas e na luta pela sobrevivência, já o homem primitivo recorria a formas de culto às divindades e forças da natureza, como forma de obter a benevolência destes, afastando os males. Carregar objetos e representações ligadas aos deuses ou aos ancestrais seriam formas de reconfortar-se e contar com a proteção deles.
Motivados possivelmente pela experiência dos sonhos, de fenômenos extáticos, ou mesmo da própria reflexão, os nossos ancestrais intuíram a possibilidade de existirem outros mundos, e a possível influência de seres espirituais no nosso mundo. Em verdade, a própria natureza, para eles, eram seres pessoais que controlavam suas vidas...
Desde os primórdios da história, o culto dos elementos da natureza como o sol, a lua e outros astros, de animais, da floresta, das montanhas é recorrente. Isso pressupõe que estes elementos seriam seres espirituais com quem se pode de alguma forma relacionar-se.
Sistemas de crença posteriores postularam divindades pessoais responsáveis por aspectos da natureza e da vida humana, mas só que estes viveriam em outro plano, no alto dos montes, ou além dos céus. Procurando se situar diante do fenômeno da vida e da morte, os antigos já praticavam rituais de sepultamento e mantinham a crença na influência dos espíritos dos ancestrais. Personagens ilustres são considerados heróis divinizados.
As boas condições naturais, chuvas abundantes, fartas colheitas, fertilidade dos animais, bons resultados nas caças, a fertilidade das mulheres e o crescimento da família eram vistos como bênçãos dos deuses, ao passo que as catástrofes naturais, como terremotos, tempestades, erupções vulcânicas, quedas de meteoritos, derrota em guerras, a infertilidade, as pestes, doenças e a morte eram vistos como maldição e castigo dos deuses.
O mundo divino e a relação entre os vários deuses em uma dada mitologia são uma imagem das relações humanas: casam-se, tem filhos, há rivalidades, lutas pelo poder... Estes podem ou não interessar-se pelos humanos e unir-se com eles, dando a origens a seres híbridos, heróis e gigantes. Aspectos estes presentes nas variadas cosmogonias e teogonias presentes nas mais variadas culturas como forma de explicitar a origem dos deuses e das forças da natureza.
Nas sociedades mais avançadas, a partir da Idade do Bronze Antigo, as divindades foram também formas de legitimação do monarca e das leis de convivência. O âmbito religioso é um lugar privilegiado de produção cultural em que se desenvolvem o conhecimento do mundo natural e os princípios de sabedoria para o bem viver, que dependem da cosmovisão presentes nas culturas particulares.
A religião torna-se um aspecto fundamental na vida das pessoas, e foi muitas vezes utilizada pelos poderes dominantes ligados aos chefes religiosos, como forma de exploração e manutenção do status quo. O sistema religioso tornou-se parte do aparato estatal, onde há uma relação entre a identidade nacional, o governante e a religião ou deidades cultuadas. Todavia algumas religiões pretenderam o universalismo, tornando-se religiões supra-nacionais.
O Judaísmo pós-exílico é uma forma posterior de religião em que circustâncias históricas bastante particulares culminaram na crença de que o deus nacional YHWH era o único Deus, não só de Israel, mas também de todas as nações, atribuindo-lhe todas as ocupações (geralmente positivas) dos deuses anteriormente cultuados. O monoteísmo estrito foi exigido no culto, ainda que mesmo nas doutrinas mais exclusivistas se crê em outras entidades espirituais inferiores auxiliares, os anjos, ou opositoras, os demônios.
A Filosofia grega foi uma experiência particular de tentativa de explicação da realidade segundo princípios racionais, em oposição à vasta mitologia presente nesta cultura. O helenismo forneceu o pano de fundo político e cultural que permitiu a aproximação entre a cultura judaica e a filosofia grega. O Judaísmo, através de Fílon de Alexandria e Moisés Maimônides, o Cristianismo, através de Orígenes, Agostinho e Tomás de Aquino; o Islamismo através de Avicena a Averroes souberam como harmonizar os conceitos filosóficos gregos com a crença em seu Deus, fortalecendo o conceito de um Deus único. A ideia de um Deus único criador e mantenedor do universo satisfez em grande parte a consciência das grandes civilizações ocidentais e médio-orientais ao longo de quase dois mil anos, de modo que aparenta ser um conceito bastante robusto, não obstante tenha suscitado problemas como por exemplo a questão sobre a existência do mal, ou o livre-arbítrio.
Vale pontuar que as religiões oficiais e intelectualmente elaboradas são compreendidas ao seu modo no meio popular, que interpreta e agrega à religião oficial, crenças próprias.
O impacto mais forte sobre as religiões, todavia, veio com o advento do Iluminismo, do Positivismo e do Naturalismo que, propondo o antropocentrismo e o método científico, encontrou respostas palpáveis e comprováveis para muitos aspectos da explicação do mundo, o que antes era matéria do campo da religião. Inclusive a própria religião tornou-se um campo da análise científica por meio de disciplinas como a antropologia, a psicologia e a ciência das religiões.
Nas sociedades que de alguma forma foram influenciadas pelo Iluminismo e contaram com o notável desenvolvimento das ciências, as afirmações da religião passaram a transitar na obscuridade dos fenômenos inexplicáveis e das matérias intocáveis pelo método científico, sobre o ser, a origem última do universo, a existência de um mundo espiritual ou a vida após a morte, e sobre conselhos para o bem viver... Em sociedades fortemente industrializadas e com alta escolaridade como certos países europeus a indiferença religiosa e o ateísmo passam a ser preponderantes.
Não obstante as discussões teóricas, as pessoas continuam a ser religiosas, a implorar o beneplácito das divindades em seu favor, a buscar uma salvação extraterrena ou um motivo maior para manterem atitudes éticas, seja através das instituições religiosas seja através do culto pessoal. Pode talvez ser reconfortante acreditar em uma força maior regendo nossas vidas e ofertando esperança diante de nossos fracassos.
No mundo pós-moderno, também a religião se modificou, os grupos religiosos utilizam-se do aparato midiático, capitalista e dos recursos de comunicação como forma de propagação de suas doutrinas.
O maravilhamento com as forças do universo, a percepção de uma ordem na natureza, a impossibilidade de os avanços científicos ou os recursos da sociedade capitalista em atender a todas as pessoas e a certas demandas existenciais da vida humana, permitem a perpetuação da prática religiosa.
Vale questionar se as experiências de transformação pessoal através da experiência religiosa, os relatos de milagres e as experiências místicas teriam um fundamento meramente mito-psicológico ou teriam de fato alguma materialidade.
Diante do que foi apresentado, percebe-se o papel da religião como horizonte de sentido para a vida humana, o qual seguiu um processo de desenvolvimento, fortemente marcado pelas circunstâncias históricas. A universalidade do fenômeno religioso e o relato de experiências religiosas nos levam a questionar sobre a possibilidade de uma objetividade da espiritualidade, e sendo esta, possível, em que medida seria possível separá-la das circunstâncias históricas e jogos de interesse envolvidos?
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